Formado em Medicina Veterinária pela FMVZ-USP Residência em clínica médica de pequenos animais na FMVZ-USP Mestrado em clínica médica na FMVZ-USP Professor de pós-graduação em felinos da Anclivepa, Equalis e Metodista Membro da American Association of Feline Pratice Atendimento exclusivo de felinos na VETmasters e Pet Care Hospital Veterinário.
INTRODUÇÃO
As doenças do intestino delgado em felinos domésticos são comuns, podendo ocorrer em qualquer idade, apesar de serem mais frequentes em adultos e idosos. Como são alterações com sintomas geralmente inespecíficos, muitas vezes sutis e menos severos, podem passar despercebidos pelos clínicos, o que torna o diagnóstico mais complexo e o tratamento mais raro.
Classicamente se espera que animais com alterações de intestino delgado tenham diarreia como o principal sintoma, especificamente diarreia com características dessa região intestinal, em grandes volumes sem urgência nem disquesia, sem muco ou sangue, etc. (tabela 1).
Tabela 1 - Características das diarreias de acordo com a região intestinal afetada
Nos gatos, a diarreia é somente o terceiro sintoma mais comum nesses animais. O principal achado é perda de peso, seguido de êmese e depois diarreia (DENNIS et al., 1993; HART et al., 1994) (gráfico 1). Esses sintomas podem ocorrer de forma isolada ou associada.
É interessante notar que muitos proprietários não consideram essas manifestações como sintomas de doença, achando natural a perda de peso com a idade ou mesmo vômitos frequentes, considerando que podem ser por engasgos, eliminação de pelos, comer rápido demais ou outras desculpas. É papel do clínico questionar sobre vômitos, características e frequências destes.
Gráfico 1 - Porcentagem de manifestações clínicas apresentadas por animais com doenças de intestino delgado (NORSWORTHY et al., 2013)
Esses sintomas inespecíficos (perda de peso, êmese e diarreia) têm outros diagnósticos diferenciais além da síndrome de má absorção (que é causada pelas alterações de intestino delgado). Outras alterações metabólicas têm os mesmos achados, como o aumento de metabolismo (causado pelo hipertireoidismo, doença comum em animais com mais idade), diabetes mellitus e, mais raramente, síndrome de má digestão (como insuficiência pancreática exócrina, que não é comum em gatos). Por isso animais com essa manifestações clínicas precisam de exames laboratoriais para descatar outras possibilidades.
A alteração mais comum no exame físico é a perda de peso. É necessário realizar um exame físico completo procurando outras alterações, notadamente palpação de tireoide ou halitose acética. Notar a perda de massa muscular pode ser mais importante que a perda de peso total. A palpação da camada de musculatura sobre as costelas, coxal e escápulas de ser feita em todos os pacientes.
Perceber diferenças do intestino com palpação abdominal é complexo, na maioria das vezes são variações muito discretas na espessura (de poucos milímetros) e como os intestinos são órgãos musculares, essas variações podem ser por contrações ou turgidez durante a manipulação. O ultrassom de abdome é o melhor exame para avaliar essas alterações e é essencial para o diagnóstico.
O ultrassom é um exame simples e não invasivo, que permite avaliar a espessura dos intestinos, sua estrutura de camadas e a motilidade, além de avaliar os demais órgãos abdominais. Como as alterações intestinais são a principal causa de êmese em gatos, todos os animais que vomitam mais de 3 vezes por mês precisam realizar o exame.
No ultrassom, o intestino normal se apresenta com cinco camadas de ecogenicidades alternadas, sendo a mais interna o lúmen intestinal (hiperecogênico), seguido da mucosa (hipoecogênica), submucosa (hiperecogênica), muscular (hipoecogênica) e a mais externa a serosa (hiperecogênica) (Figura 1).
Figura 1 - Imagem de ultrassom mostrando as 5 camadas do intestino, marcada com “+” . Número 1 localiza o lúmen intestinal, seguido pelas outras camadas (mucosa, submucosa, muscular) e a serosa, marcada pelo “+" mais abaixo. Foto do arquivo pessoal Dra. Mariana Ferreira.
Como as principais doenças de intestino delgado causam espessamento das camadas intestinais, a medida dessas espessuras em diferentes regiões é importante para o diagnóstico desses animais. Existem variações nos padrões de espessuras normais dos intestinos, na maioria das vezes considerando espessuras diferentes para os diferentes segmentos. Alguns autores descrevem espessuras de até 0,38 cm como normais (GASCHEN, 2011; NEWELL et al., 1999). Trabalhos mais recentes mostram que essas medidas não são normais, aceitando como normal até 0,25 cm de espessura; usando a espessura de 0,28 cm como limite de normalidade a especificidade do ultrassom é de 99% para alterações (NORSWORTHY et al., 2013).
As causas mais comuns desses espessamentos são células inflamatórias (doença inflamatória intestinal) ou células neoplásicas (como linfoma, carcinoma ou mastocitoma). Usando como limite a espessura de 0,28 cm, 49% dos animais tinham doença inflamatória intestinal e 50% tinham alguma neoplasia, somente 1% não tinham alteração com esse limite de espessura (Gráfico 2).
Apesar de o ultrassom ser essencial para determinar alterações no intestino delgado, ele não permite diferenciar a causa dessa alteração, uma vez que a imagem ultrassonográfica é idêntica para todas as alterações. Algumas lesões mais severas, como espessamentos importantes de diversos segmentos, aumento de linfonodos abdominais e perda de estratificação de camadas são mais sugestivas de neoplasias, mas não patognomônicas delas.
Gráfico 2 - Porcentagem de alterações encontradas em animais com espessura intestinal acima de 0,28 cm. (NORSWORTHY et al., 2013)
Para diferençar as causas é necessário realizar biópsia intestinal, para histopatologicamente diferenciar tumores de inflamações (mesmo assim, alguns tipos de linfoma são complexos de serem diferenciados de inflamações). É recomendado realizar a biópsia por laparotomia, pois é preciso realizar análise histopatológica de todas as camadas do intestino (endoscópio somente consegue biopsiar as camadas mais internas do intestino) e a maioria das alterações ocorre no jejuno, local onde o endoscópio não consegue atingir. Por isso as amostras obtidas por laparotomia são superiores as da endoscopia (EVANS et al., 2006).
O procedimento de biópsia é simples e a recuperação dos gatos costuma ser muito boa, sem complicações e com pós-operatório confortável. É feito rapidamente, usando um "punch" de 6 mm para as biópsias do intestino (figuras 2 a 4). Como o diagnóstico preciso permite o melhor tratamento e aumenta a sobrevida, ele é recomendado para todos os animais com suspeita de doenças no intestino delgado.
Figura 2 - Biópsia de segmento intestinal realizada com “punch" de 6 mm no local de maior espessamento intestinal, diagnostico posterior de linfoma linfocítico. Foto do arquivo pessoal.
Figura 3 - Região de grande espessamento intestinal focal, em animal com diagnóstico posterior de carcinoma intestinal. Foto do arquivo pessoal.
Figura 4 - Segmento de alça intestinal aberto, evidenciando grande aumento da espessura da parede e corpo estranho (folha), diagnóstico posterior de linfoma linfoblástico. Foto do arquivo pessoal.
Doença inflamatória intestinal
Os sintomas e consequências da doença inflamatória intestinal (DII) ocorrem por infiltração de células inflamatórias nas paredes intestinais. As causas dessa inflamação não são totalmente entendidas, sendo classicamente uma doença idiopática. Mas, por uma simplificação clínica, são incluídas nesse diagnóstico outras alterações que geram inflamações no intestino, como reações alimentares (JERGENS et al., 1992).
As reações alimentares englobam todas as inflamações causadas por alimentos, como hipersensibilidades a antígenos da dieta, alergia alimentar ou alimentos inadequados.
A DII é um diagnóstico de exclusão, quando se descartou outras causas de inflamação (como infecções e parasitas intestinais) e principalmente a presença de neoplasias (WASHABAU et al., 2010).
Características
As manifestações da DII são as mesmas de quaisquer alterações de intestino dos felinos, não sendo possível diferenciar a causa pelas características raciais, idade, sintomas ou exame físico.
A DII sempre foi considerada como doença autoimune, em que um desequilíbrio do sistema de defesa do organismo é a responsável pela inflamação intestinal. É sabido que esses pacientes apresentam alterações na produção de citocinas inflamatórias e tambpem nas imunomoduladoras (NGUYEN et al., 2006).
Além da ação do sistema imune, existe a participação de outros fatores, como por exemplo, presença de bactérias intestinais, influenciando no aumento da inflamação (JANECZKO et al., 2008).
Portanto, a DII pode ser considerada como uma consequência da reação a antígenos no intestino (sejam eles de bactérias patogênicas, da microbiota intestinal normal, de parasitas ou de alimentos) associado a alterações de imunológicas do animal.
Diagnóstico
A ultrassonografia de abdome é o primeiro exame para diagnosticar alterações intestinais, onde se procura espessamento das camadas intestinais em diferentes segmentos (Figura 5).
Figura 5 - Ultrassom de duodeno, com espessamento de alça (0,31 cm), evidenciando camada muscular (a mais comum de espessar em doenças do intestino delgado), em animal com doença inflamatória intestinal. Foto do arquivo pessoal Dra. Mariana Ferreira.
O diagnóstico final é realizado por meio de biópsia intestinal, para descartar a presença de formações neoplásicas e confirmando assim a presença de inflamação. Os exames de sangue podem ser normais e não existem características laboratoriais patognomônicas de DII. Alguns animais apresentam aumento da atividade de enzimas hepáticas, hemoconcentração por desidratação discreta (JERGENS et al. 1992) e hipocobalaminemia é uma consequência comum (SUCHODOLSKI, STEINER, 2003). Os exames de sangue são importantes no diagnóstico para descartar outras possibilidades, como doenças não relacionadas com o sistema gastrintestinal (hipertireoidismo e diabetes mellitus, por exemplo).
Os critérios para determinar a DII foram determinados pela World Small Animal Veterinary Association (WSAVA) (WASHABAU et al., 2010):
Sintomas (perda de peso, êmese, diarreia) por mais de 3 semanas;
Sem melhora com tratamento sintomático (como vermífugos, antibiótico, troca de dieta);
Sem causa evidente;
Sem presença de neoplasia no histopatológico intestinal.
As causas mais comuns de infamação são infiltração linfocítica/plasmocítica nos intestinos, correspondendo de 70% a 100% dos casos (CRANDELL et al., 2006; JERGENS et al., 1992). Outras causas de infamações são mais raras e, dependendo do tipo, podem ter uma resposta mais pobre à terapia medicamentosa. São descritas inflamações eosinofílicas, neutrofílicas, mistas e granulomatosas (esta última normalmente relacionada à infecção pelo coronavírus, vírus causador da peritonite infecciosa felina - PIF) (KLEINSCHMIDT et al., 2010).
É interessante notar que não existe uma relação direta da gravidade da inflamação na análise histopatológica com a intensidade dos sintomas apresentados. Assim, gatos com alterações inflamatórias discretas podem ter sintomas importantes e vice-versa (JERGENS et al., 1992).
Tratamento
O tratamento consiste em dois pilares, a troca de alimentação e o uso de medicamentos, usualmente imunomoduladores.
Como reações a alimentos (hipersensibilidade, alergias) podem ser a causa ou fator agravante da DII, sempre é recomendada a troca de alimentação para dietas específicas. Apesar de alguns trabalhos não demonstrarem grande benefício somente com a troca da ração, Guilford et al. obteve melhora em 29% dos animais somente com essa medida. Essa melhora ocorreu em aproximadamente 4 dias após a mudança total de alimento (GUILFORD et al., 2001), mais rápido do que o normalmente descrito.
A escolha da nova dieta é importante para o sucesso da terapia. É recomendado o uso de alimento industrializado de alta qualidade e balanceado como rações terapêuticas para não ocorrer deficiências nutricionais. Esse alimento deve ser de fácil digestão e não deve conter antígenos que estimulem o sistema imune. Isso pode ser feito com o uso de novas proteínas com as quais o animal ainda não teve contato (fonte de alimentos que ele não tenha comido anteriormente) ou, preferencialmente, com o uso de proteínas hidrolisadas, pois são mais fáceis de serem digeridas e diminuem a antigenicidade por serem menores e consideradas fonte nova de proteína, desde que o animal não tenha tido contato anteriormente. A palatabilidade também é um fator que precisa ser considerado na escolha da ração, pois, pelo temperamento dos felinos, não temos como forçá-los a comer algo que não aceitem.
Mesmo os animais que respondem à troca de dieta precisam ser acompanhados, pois alguns que têm DII sem relação com alimentos podem melhorar temporariamente com a troca de ração. Como há uma alteração de antígenos e também da microbiota intestinal, a melhora pode ocorrer independentemente da causa (HART et al., 1994).
A terapia medicamentosa quase sempre é necessária, sendo feito o uso de imunomoduladores, geralmente cortisona. Entre os diferentes tipos de cortisona, a primeira opção é por variações menos potentes e de uso oral, por serem mais seguras e causarem raros efeitos colaterais nos gatos. Como felinos podem ter deficiência na glucuronidação hepática de alguns medicamentos, é preferível usar a forma ativa de cortisona, como a prednisolona (em vez de prednisona ou outros tipos de corticoides).
Não existe um protocolo padrão ou dose correta para o uso de prednisolona nos casos de DII, isso depende dos sintomas, da gravidade do quadro e do tempo de evolução. O usual é 1 a 2 mg/Kg SID durante 15 dias e ir reduzindo gradativamente a dose conforme avaliação dos sintomas e exames de imagem, se possível passando para medicação cada 48 horas (em dias alternados).
Sempre com o uso de medicamentos é feita a troca da dieta para alimento terapêutico para auxiliar no tratamento. Com a rediução gradual da dose de cortisona queremos observar se somente a nova dieta é suficiente para controlar os sintomas, eliminando a necessidade de medicamentos de uso contínuo.
Alguns animais que dependem de cortisona para controlar da inflamação, uma opção para o uso crônico é a budesonida. Ela é uma cortisona menos potente, com a absorção sistêmica bem reduzida em comparação a outros corticoides. Assim, ela tem ação mais específica e com menos efeitos colaterais. A dose de budesonida equivalente a 5 mg de prednisolona é de 1 mg. Esse medicamento precisa ser manipulado em farmácias específicas em forma de cápsulas entéricas e ser administrada inteira (sem abrir a cápsula ou dissolver o conteúdo), para que sua dispersão ocorra no intestino. Para os animais que respondem bem a esse tratamento, também é recomendado fazer a redução gradual da dose para determinar a menor quantidade eficaz de medicamento (do mesmo modo que é feito com a prednisolona).
Muitos animais com DII apresentam diminuição dos níveis séricos de cianocobalamina (vitamina B12). É recomendado exame de sangue para avaliar a presença da hipocobalamenia, já que ela pode piorar os sintomas e diminuir a resposta ao tratamento (SIMPSON et al., 1997). A dose recomendada é de 250μg/gato por via SC, 1 vez por semana durante 4 semanas, após a dose é feita mensalmente e ajustada conforme os níveis séricos. Quando não é possível realizar a dosagem de cobalamina é recomendado realizar a suplementação em todos os animais.
Em animais que não respondem bem à terapia inicial ou que tem inflamações muito severas é preciso reavaliar o diagnóstico (revendo os exames e conversando com o histopatologista) e procurar outros fatores complicadores, como falhas na dieta, presença de parasitas ou infecções. Nesses casos, as opções terapêuticas são o aumento da dose de prednisolona ou a associação de outro imunomodulador. O segundo medicamento de escolha é o clorambucil, um quimioterápico alquilante que tem ação lenta e controla a multiplicação das células inflamatórias. A dose é de 2 mg/gato, 3 vezes por semana (segundas, quartas e sextas, por exemplo). É um medicamento seguro que apresenta poucos efeitos colaterais