Aspectos clínicos das principais doenças do trato urinário inferior dos felinos
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Alexandre G. T. Daniel, MV, Msc.
Consultoria e atendimento especializado em medicina felina Universidade Metodista de São Paulo
Gattos – Clínica Especializada em Medicina Felina
Introdução
O termo “doenças do trato urinário inferior dos felinos”(DTUIF) compreende um espectro de diferentes enfermidades que acometem a vesícula urinária e/ ou uretra dos gatos domésticos, com manifestações clínicas similares, independente da causa de base. As manifestações clínicas podem incluir disúria, hematúria (figura 1), periúria, polaciúria, lambedura excessiva de região perianal e abdominal ventral, além de alterações comportamentais e agressividade. Além disso, em virtude da característica anatômica da uretra peniana, machos podem desenvolver estrangúria decorrente de obstrução uretral, condição esta que incorre em risco de vida para o paciente, sendo necessária a intervenção emergencial.
Visto que o trato urinário responde a diferentes insultos de maneira similar, as manifestações clínicas raramente são indicativas de uma doença em específico. Portanto, DTUIF é um termo confuso, que denota uma diversa quantidade de diferentes manifestações comuns aos quadros inflamatórios que acometem bexiga e/ou uretra.
Sendo assim, as alterações anteriormente citadas somente localizam anatomicamente o problema, mas não o discerne, sendo importante conhecer o comportamento epidemiológico destas enfermidades causais, bem como sua prevalência. Além de abordagem lógica e estruturada, é fundamental utilizar os corretos exames complementares para chegar ao diagnóstico exato.
A cistite idiopática (ou intersticial) é responsável pela maior parte dos casos das DTUIF, correspondendo a 55-60% da casuística, sendo considerada a doença urinária mais comum da espécie. As urolitíases correspondem a cerca de 15 a 20% dos casos; alterações anatômicas, infecções bacterianas e neoplasias de trato urinário inferior correspondem, somadas, por menos de 15 % da casuística, com as uretropatias obstrutivas correspondendo a 15-20% dos casos.
Com relação às uretropatias obstrutivas, tampões uretrais, urólitos e espasmos uretrais são os principais agentes causais envolvidos. Neste trabalho, serão abordadas as principais doenças de vias urinárias inferiores não obstrutivas.
Figura 1 – Hematúria de paciente com doença de via urinária inferior. Embora as manifestações clínicas auxiliem na localização semiológica do processo, não permitem delinear um diagnóstico definitivo sem o auxílio de exames complementares. Foto: Arquivo pessoal do autor.
Cistite idiopática (intersticial) felina – CIF
A CIF é considerada a principal causa de doença urinária inferior da espécie (Figura 2). É comum em animais jovens e adultos (entre um e cinco anos de idade), sendo mais prevalente em animais obesos, sedentários, com pouca interatividade ambiental e alimentados exclusivamente com alimento seco.
Embora sua manifestação seja primariamente em trato urinário inferior, a cistite intersticial tem sua fisiopatogenia ocorrente como um conjunto de alterações em sistema neuroendócrino, classificando-a como uma inflamação de origem neurogênica.
É sabido que animais com CIF possuem diversas alterações na interação entre o sistema nervoso central, adrenais, bexiga, hábitos de manejo e enriquecimento ambiental. Os animais acometidos possuem maior atividade simpática adrenérgica em diversos sítios centrais, maior número de fibras aferentes adrenérgicas, maior número de fibras C e receptores de dor vesicais, bem como menor efetividade da camada de glicosaminoglicanas da bexiga, maior número de mastócitos vesicais, entre diversas outras alterações.
A maior atividade simpática e o maior número de fibras adrenérgicas, associados ao maior número de mastócitos e receptores de substância P vesicais, resultam em maior estímulo vesical, gerando vasodilatação, dor e degranulação mastocitária. Isto gera liberação de uma grande variedade de mediadores inflamatórios e resulta em aumento de permeabilidade tecidual, edema, vasodilatação intramural e contração de musculatura lisa, classificando, assim, a inflamação de origem neurogênica.
Figura 2 – Paciente com CIF manifestando disúria durante atendimento clínico. Foto: Arquivo pessoal do autor.
Aliado a estes fatores de origem neurogênica e teciduais locais, animais com CIF não respondem da mesma maneira fisiológica ao estresse (quando comparados a animais hígidos). Esses animais tem baixa produção de cortisol e de outros esteroides produzidos na adrenal, o que os torna hiperresponsivos a diversos estímulos estressores.
Embora diversas alterações já tenham sido descritas em gatos com CIF, ainda é incerto se estas são o fator primário na síndrome, ou somente reflexo de alterações ambientais, genéticas, ou de agentes infecciosos não identificados.
Na maioria dos casos, o fator desencadeador de crise está ligado ao estresse ou mudança de rotina do animal. Conflito entre gatos, superpopulação, introdução de um novo animal, situações estressantes no local de vivência, ansiedade de separação, entre diversos outros fatores.
O diagnóstico só pode ser feito por meio da exclusão de outras causas de inflamação de vias urinárias inferiores. Sendo assim, a realização de avaliação laboratorial hematológica e urinária, além de exames de imagem é fundamental.
Cerca de 75% a 85% dos quadros são de episódios auto-limitantes e agudos; 10% dos animais apresentam episódios recorrentes de manifestações urinárias; e menos de 10% dos quadros são de animais com manifestações permanentes.
Casos de CIF auto-limitantes (a maioria), são resolvidos em cerca de cinco a 10 dias, independente da terapêutica utilizada, fazendo com que pesquisas sobre respostas terapêuticas sejam difíceis de se concretizar. Muitas vezes, não se consegue classi car se a resposta foi devido à terapia ou simplesmente à remissão espontânea das manifestações clínicas. No entanto, é de fundamental importância que se institua um protocolo terapêutico em gatos com CIF, visando minimizar o tempo de duração das crises, bem como aumentar o intervalo entre as mesmas. Na atualidade, a CIF é considerada uma das principais causas de dor crônica não identificadas na espécie felina.
Diversos são os protocolos terapêuticos disponíveis, tendo maior aceitação e resposta a nominada “terapêutica multimodal” – onde associam-se fatores de modificação/enriquecimento ambiental, agentes farmacológicos, redução do estresse, manejo de ingestão hídrica e alteração da dieta.
A modificação dietética consiste em um importante ponto de manejo a longo prazo do gato com CIF. Gatos alimentados com dietas úmidas (ou dietas que aumentem a ingestão hídrica) possuem menor taxa de recidiva das manifestações clínicas da CIF, quando comparados aos que utilizam exclusivamente dieta seca, principalmente pelo fato da diluição urinária. A concentração urinária obtida com o uso de dietas úmidas é bem menor do que de gatos alimentados com dietas secas, o que gera maior diluição urinária, além de aumentar o número de micções. As estratégias para aumento da ingestão hídrica (como a utilização do alimento úmido) são sempre recomendadas em gatos com doenças de vias urinárias inferiores.
Visto as alterações encontradas na bexiga dos gatos acometidos, a redução da concentração urinária associada ao maior número de micções tende a agredir menos o urotélio, minimizando o desconforto vesical.
Urolitíases
Urolitíase é definida como a formação de cálculos ou urólitos (e seus efeitos) em trato urinário inferior (Figuras 3 e 4). É considerada a segunda causa mais comum de doença urinária na espécie.
Os principais tipos de urólitos em felinos são os de oxalato de cálcio e fosfato amônio magnesiano (estruvita) que, juntos, correspondem a mais de 90% da casuística das urolitíases. Os fatores predisponentes à sua ocorrência são a baixa ingestão hídrica, obesidade, sedentarismo e uso exclusivo de alimento seco.
Figura 3 – Exame radiográfico de abdômen de um felino com litíases em vesícula urinária. Note a presença de inúmeras estruturas radiopacas em região hipogástrica, correspondendo a urólitos de oxalato de cálcio. Foto: Arquivo pessoal do autor.
Um dos fatores mais importantes em sua prevenção e tratamento é a diluição urinária (prevenindo, com isso, a supersaturação urinária), aliado a outros fatores como manutenção de um pH urinário ideal para a espécie e redução da cristalúria.
Defeitos anatômicos (como o divertículo de bexiga), predisposição individual e racial também devem ser levados em consideração, além de anormalidades metabólicas. Persas e Ragdolls são mais predispostos ao desenvolvimento de urolitíases de oxalato de cálcio; e cerca de 1/3 dos animais com recidiva de litíases de oxalato de cálcio possuem hipercalcemia idiopática.
Figura 4 – Urólitos do animal da figura 3, removidos após cistotomia. A análise do cálculo evidenciou composição de oxalato de cálcio. Foto: Arquivo pessoal do autor.
Cistites bacterianas
Enquanto nos cães as cistites bacterianas correspondem à principal causa de doença urinária inferior, nos gatos esta causa é pouco frequente, correspondendo a menos de 10% da casuística entre os processos não obstrutivos.
Fatores como alta densidade urinária, pH urinário ácido e alta concentração de ureia geram um microambiente que dificulta o crescimento bacteriano vesical em gatos, diminuindo, com isso, as enfermidades urinárias de origem infecciosa. A alteração de um ou mais fatores deste microambiente suscetibilizam o gato ao desenvolvimento de cistite bacteriana.
Este quadro é comum em pacientes nefropatas, diabéticos, hipertiroideos ou que fazem uso de corticoides. Pacientes uretrostomizados ou que tiveram sondagem uretral recente também são grandes candidatos ao seu desenvolvimento.
Sendo assim, sua prevalência está ligada principalmente a fatores de base que reduzam a densidade urinária, e que causem perda de mecanismos naturais de impedimento de ascendência bacteriana (como nos animais penectomizados) ou por causas iatrogênicas (sondagem uretral).
A análise de sedimento urinário evidencia piúria e bacteriúria, sendo a avaliação de cultura e antibiograma da urina fundamentais para o delineamento da terapêutica.
Defeitos anatômicos
As anormalidades anatômicas são pouco associadas a enfermidades urinárias inferiores, e mais comumente observadas em animais jovens (menores que um ano). Divertículo de bexiga e persistência do úraco são alguns exemplos. Exames de imagem simples ou contrastados facilitam o diagnóstico definitivo.
Neoplasias
São raras em gatos, correspondendo a menos de 2% da casuística das DTUIF, mesmo em gatos idosos. O tipo de maior ocorrência é o carcinoma de células de transição (59%), seguido por outros tumores de origem epitelial (17%), pólipos (11%) e linfoma (2%).
Conclusão
Independente da causa, as doenças do trato urinário inferior dos felinos são caracterizadas por manifestações clínicas similares, como hematúria, polaciúria, disúria e periúria. Entre os agentes causais, a mais frequente é a cistite idiopática felina, seguida pelas urolitíases.