Boletim Técnico de Cardiologia: Abordagem do paciente cardiopata canino
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Identificando cães com risco para o desenvolvimento de cardiopatias
Resenha
Embora cães de qualquer idade, sexo e raça possam desenvolver cardiopatia, a predisposição racial para o desenvolvimento de Doença Valvar Crônica e Cardiomiopatia dilatada também acontece e deve ser levada em consideração durante as consultas de rotina.
Doença Mixomatosa Valvar Crônica (DMVC)
A DMVC é uma doença que afeta a valva cardíaca mitral e/ou tricúspide. O processo de degeneração que acomete as estruturas valvares leva à perda gradativa da sua capacidade de oclusão, permitindo o refl uxo de sangue entre as câmaras cardíacas, sobrecarregando o funcionamento do coração, o que culmina com um quadro de insuficiência cardíaca congestiva (ICC).
Cavalier King Charles Spaniel
- Raça com alta incidência de DMVC;
- É comum o desenvolvimento precoce da doença;
- Mortalidade em decorrência da doença: cerca de 40%;
- Doença de elevada herdabilidade genética;
- Ponto de atenção a criadores da raça.
DMVC
A prevalência da doença é maior em raças pequenas (< 20Kg)
Raças para se atentar: Poodle Toy, Dachshund, Chihuahua, Shih-Tzu, Schnauzer miniatura, Maltês.
Cardiomiopatia Dilatada (CMD)
A CMD é uma doença que afeta o miocárdio. Com a evolução da doença, as paredes cardíacas fi cam gradativamente mais fi nas e dilatadas e com a função de bombeamento comprometida, o que resulta num quadro de insufi ciência cardíaca congestiva (ICC).
2ª cardiopatia adquirida mais comum nos cães
Cocker Spaniel
Embora não seja uma raça de grande porte, estes cães também podem ser acometidos pela CMD.
Boxer
Predispostos a cardiomiopatia arrit mo gênica similar a CMD e também chamada de cardiomiopatia do boxer, pode até resultar em morte súbita.
Dobermann pinscher
- A prevalência da doença na raça é incerta, mas aumenta com a idade;
- Doença de caráter genético e hereditário;
- Estima-se que cerca de 50% dos Dobermanns possam desenvolver a CMD;
- Arritmias cardíacas são relativamente comuns.
CMD
A ocorrência da doença é maior em raças grandes e gigantes.
Raças para se atentar: Boxer, Dogue Alemão, Labrador, Golden Retrievier e Terra Nova.
Anamnese
Algumas das queixas comuns que colocam as cardiopatias na lista dos diagnósticos diferenciais são: cansaço fácil, cianose, síncope e tosse. A tosse, com certeza, é a queixa clínica que mais afl ige os médicosveterinários, pois nem sempre é simples determinar se o sinal tem relação com o coração ou com o sistema respiratório.
Perguntas úteis para avaliação do quadro de tosse:
Início do quadro: o início agudo após um passeio ou estadia em hotel pode levantar suspeita de corpo estranho ou doença infecciosa, por exemplo.
Evolução? Tosse de caráter crônico, com evolução mais longa (> 6 meses) com progressão mínima, coloca a ICC como uma causa menos provável.
Já foi tratado? Melhora frente ao uso de corticosteroides pode deixar a ICC no fi nal de uma lista de diferenciais.
No entanto, uma combinação de vários tratamentos (antibiótico + corticoide + diurético) pode não elucidar muito o que de fato melhorou o quadro do paciente.
Uma boa auscultação torácica: o segredo é auscultar sempre!
Auscultação
A melhor maneira de treinar os ouvidos é auscultando todo paciente que chega para o atendimento de rotina (vacinas, check-ups, etc). O ouvido se habituará aos sons cardíacos e pulmonares normais e, assim, quando algo de diferente acontecer, será mais fácil identificar a alteração.
Para uma boa auscultação cardíaca, é fundamental o conhecimento dos pontos onde as valvas cardíacas são mais audíveis (Figura 1 e Tabela 1). Tão importante quanto identificar sons cardíacos e/ou pulmonares, é mensurar a frequência cardíaca e a frequência respiratória, palpar o pulso do paciente (Figura 2) e acompanhar o ritmo cardíaco.
Figura 1: Pontos para auscultação cardíaca nos cães. Figuras baseadas e adaptadas do material: Atkins, C. Cardiovascular Physical Examination. North Carolina State University.
Tabela 1: Localização aproximada dos pontos para auscultação cardíaca nos cães.
Sopro Cardíaco
O sopro cardíaco é definido como uma série prolongada de vibrações audíveis vindas do coração e vasos, atribuídas a distúrbios no fluxo de sangue cardíaco.
Devem ser classificados de acordo com a intensidade, momento durante o ciclo cardíaco e a localização (ponto onde é mais audível).
Entenda os sons cardíacos
- Primeiro som cardíaco – S1: é associado com o fechamento das valvas atrioventriculares e geralmente mais alto nos pontos mitral e tricúspide. O pulso é sentido logo após o S1.
- Segundo som cardíaco – S2: é associado ao fechamento das valvas semilunares (pulmonar e aórtica) e, portanto, será mais alto nos pontos destas valvas.
Figura 2: Palpação do pulso femoral nos cães.
Parâmetros de normalidade em cães:
- Frequência cardíaca (FC): 60 – 160 batimentos/minuto*
- Frequência respiratória (FR): 10 – 35 movimentos respiratórios/minuto
- Pulso: Forte e regular
- Ritmo cardíaco: Geralmente é regular
* Pode haver variabilidade de acordo com o tamanho do cão
Observação
Alguns cães normais (principalmente braquicéfalos) podem apresentar alterações de ritmo não patológicas. Trata-se da Arritmia Sinusal Respiratória, que é quando a FC aumenta com a inspiração e diminui com a expiração.
Exames complementares importantes
Raio-x De Tórax
A radiografia torácica é uma ferramenta importante tanto na identificação de sinais de insuficiência cardíaca congestiva (ICC) quanto na detecção de alterações respiratórias, que também podem ser responsáveis pelos sinais clínicos apresentados pelo paciente no momento da consulta.
Dentre os parâmetros avaliados na radiografia torácica, a mensuração do tamanho cardíaco pelo método VHS (Vertebral Heart Size) permite ao clínico fazer uma boa análise do tamanho cardíaco. Vide o método de mensuração VHS ilustrado nas figuras 3 e 4 e descrito abaixo.
O parâmetro de VHS, combinado com os sinais clínicos do paciente e evidências radiográficas de edema pulmonar, deixará o médico-veterinário mais seguro em tratar o paciente num primeiro momento.
Como mensurar o VHS:
- Raio-X: É necessária uma radiografia na posição latero-lateral e que esteja bem posicionada, permitindo uma boa visualização do coração e das vértebras torácicas;
- Vertebras torácicas: Identifique a vértebra torácica de nº 4 ou T4, pois a medida iniciará na borda cranial desta vértebra.
- Medida L: Trata-se do eixo longo da silhueta cardíaca: da carina do brônquio até o ápice do coração.
- Medida S: Trata-se do eixo curto, ou seja, a parte mais larga da silhueta cardíaca, perpendicular à medida do eixo longo L.
- VHS: Transfira cada uma das medidas, a L e a S, para as vértebras, iniciando a contagem pela borda cranial da T4 e faça a somatória da medidas: VHS = L + S. Nos cães, o VHS não deve ser superior a 10,5*.
*10,5 vértebras torácicas. Algumas literaturas apontam variabilidades nos valores do VHS, de acordo com a raça do cão.
Ecocardiograma, Eletrocardiograma e Holter
O ecocardiograma traz informações mais específicas e detalhadas do coração. Por este exame, pode-se avaliar o tamanho de cada câmara cardíaca (átrios e ventrículos), a espessura das paredes cardíacas, a aparência estrutural e o funcionamento das valvas cardíacas, o padrão de fluxo sanguíneo, a presença de coágulos e a capacidade de bombeamento do coração. Ainda é possível detectar anormalidades como massas e presença de líquido pericárdico e pleural.
O eletrocardiograma (ECG) avalia as correntes elétricas responsáveis pelo funcionamento do músculo cardíaco, fornecendo informações importantes do ritmo cardíaco. Como o ECG faz uma avaliação pontual dos distúrbios elétricos cardíacos e existem situações nas quais estes distúrbios são intermitentes, o exame de Holter – que nada mais é do que um ECG que grava o ritmo cardíaco por um período pré-determinado (geralmente 24 a 48h) – poderá ser indicado em algumas situações.
A mensuração da pressão arterial sistêmica é outro exame importante, e que deve fazer parte não somente da avaliação dos cardiopatas, mas de todo paciente na rotina clínica.
Figura 5: Ecocardiograma cão – Corte 4 câmaras longitudinal paraesternal esquerdo, modo B. Observa-se aumento discreto a moderado de AE e VE com prolapso mitral. Cortesia M.V. Cardiologista Eduardo Lipparelli Fernandez
Figura 6A: Os clipes do ECG devem ser colocados apropriadamente no paciente para que o ECG seja obtido de forma correta (fonte: Clinician´s brief: Garcia, K. Obtaining a Diagnostic Electrocardiogram.)
Figura 6B: Eletrocardiograma normal – representação das ondas PQRST. Onda P – despolarização atrial; Complexo QRS – despolarização dos ventrículos; Onda T – repolarização dos ventrículos.
Tenho um paciente cardiopata: e agora?
Há sinais clínicos de Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC)?
Tão importante quanto saber se há sinais compatíveis com doença cardíaca é determinar se o paciente está em ICC. Cães em ICC podem estar em risco de morte, podendo precisar de internação e cuidados intensivos para estabilizar o seu quadro clínico.
Sinais clínicos para se atentar:
- Tosse
- Cianose
- Síncope
- Distrição respiratória
No exame físico, observe se há alterações em:
- Pulso
- Palpação abdominal
- Mucosas e TPC
- Padrão respiratório
- Temperatura corporal
Como está a auscultação cardiopulmonar? Procure identificar:
- Crepitação pulmonar
- Abafamentos de sons cardíacos/respiratórios
- Frequências cardíaca e respiratória (taquicardia e/ou taquipneia)
O uso do Raio-X de tórax é a melhor ferramenta para diagnosticar ICC.
Figura 7: Radiografia lateral direita de um cão – observa-se cardiomegalia e edema pulmonar secundário a um quadro de ICC.
ATENÇÃO: Nunca submeta o paciente a um risco desnecessário! Em casos de distrição respiratória grave, a intervenção clínica deve preceder qualquer exame complementar.
Na atualização do consenso, ocorrida neste ano de 2019, cães em estágio B2, que atendam determinados critérios radiográficos e ecocardiográficos, já podem sofrer intervenção medicamentosa com o Pimobendan com o intuito de prolongar a fase pré-clínica da doença, o que é um ganho em qualidade de vida para o paciente, que poderá permanecer mais tempo sem sintomatologia de ICC.
E se não há sinais de Insuficiência Cardíaca Congestiva (ICC)?
Importante reforçar que um cão cardiopata diagnosticado num exame de rotina, após a identificação de um sopro, por exemplo, nem sempre precisará de intervenção medicamentosa. No entanto, uma vez diagnosticado, acompanhar periodicamente o paciente é imprescindível.
Estabeleça um plano de acompanhamento para que a intervenção seja feita assim que necessária, já que as doenças cardíacas costumam ser progressivas.
Dicas
1. Avaliação periódica
Auscultação, Raio-X de Tórax (VHS).
2. Educação do tutor
Ensiná-lo a identificar alterações como: contar a frequência respiratória e cardíaca, observar se há piora da tosse, diminuição de apetite, intolerância ao exercício, etc.
3. Mantenha-se em contato com o cardiologista
O trabalho conjunto melhora a identificação de alterações e aumenta as chances de diagnóstico ou intervenções certeiras, tanto para pacientes assintomáticos quanto naqueles em acompanhamento pelo profissional.
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